AFORISMO III

"Os cristãos poderiam aprender uma coisa preciosa com Jesus: serem religiosos de menos e humanos demais". Dalmo Santiago.

NIETZSCHE: UM GRITO DE ALERTA PARA A IGREJA E UMA PROPOSTA DE SALVAÇÃO PARA A MESMA



           

Dalmo Santiago Junior



            O título de imediato traz ao leitor um susto repentino e um desejo de não continuar a leitura por pensar: "lá vem mais uma reflexão de Nietzsche que “desce a porrada” no cristianismo". De certo modo farei essa reflexão, mas não para induzi-lo a abandonar sua fé, apenas refletir sobre ela e melhorá-la (já que também sou cristão!). O encontro com Nietzsche é algo interessante por suscitar nos espíritos modernos antipatia por aqueles que se entendem religiosos e simpatia pelos que se denominam ateus. Não por acaso surge esses sentimentos nos leitores desse pensador alemão. Porém, posso dizer com certeza que Nietzsche muito mais que um transmutador da moral é um terremoto, como ele mesmo se denominou “sou uma dinamite”, que chacoalha os espíritos dormentes e desperta do sono indolente as almas deleitadas na miséria. É nesse sentido que busco em Nietzsche uma reflexão para nós da igreja.
      Ser crente e, principalmente cristão, é estar ciente de seu compromisso com os ensinos de Jesus de Nazaré, aquele que para uns foi um profeta e para outros Filho de Deus, e assim como crente creio. A pessoa e os ensinamentos de Jesus sempre são os elementos norteadores da vida do cristão. Temas como: amor, compaixão, graça, virtude, misericórdia fazem parte não apenas dos dogmas da igreja, mas também de sua ética. O cristão entende no aceitar o cristianismo como religião sua que deverá caminhar por este caminho sagrado que exige do crente tais práticas. Essa percepção é clara e límpida, mas o que se percebe quando fazemos uma retrospectiva histórica, é que aquela que se considera portadora do Evangelho e promulgadora do mesmo em muitos momentos deu sinal de que não estava comprometida com tal ética. O que dizer de situações como a perseguição engendrada pela Igreja logo no século IV quando sobe ao poder com Constantino.
Não há como desassociar a história da igreja com a morte de milhares de pessoas na Idade Média através do Tribunal do Santo Ofício. Mulheres consideradas bruxas eram lançadas em fogueiras ardentes para purificação de suas almas. Homens doutos nas ciências, como Nicolau Copérnico, ao descobrir o sistema heliocêntrico foi duramente perseguido pela Igreja que ordenou ao mesmo que negasse suas descobertas. Sua obra “Das Revoluções dos Corpos Celestes” foi incluída no Índex (livros proibidos pela Igreja considerados pecaminosos). Aqui refiro-me à Igreja Católica. Só que não foi apenas esta igreja que realizou uma inquisição. Lutero também iniciou a dele.
Nos países em que seus governantes assumiram o protestantismo o derramamento de sangue foi intenso. No século XVI, fins da Baixa Idade Média, houve um massacre de monges da Abadia de São Bernardo de Brémen que eram dilacerados e sofriam o ardor do sal que os protestantes colocavam nos cortes ainda frescos nas carnes abertas. Depois da tortura eram levados à forca para ali morrerem asfixiados e finalmente dilacerados estando já mortos. Poderíamos citar diversos exemplos da violência empregada pelas igrejas cristãs, mas precisamos ser objetivos.
Fiz esse pequeno apanhado histórico para compreendermos que quando Nietzsche diz em seu Zaratustra “Deus morreu” mais do que uma mera declaração de um ateu essa afirmação revela uma responsabilização da igreja cristã como um todo porque, Nietzsche não está dizendo que ele matou Deus, mas que os próprios cristãos o fizeram através de sua práxis de violência. De que morte estaria falando Nietzsche? Foram muitos os argumentos acerca dessa questão, mas hoje entende-se essa “morte” como um de-significado de Deus para a modernidade. E é isso que exatamente preocupa a igreja cristã. Ao olhar em volta ele percebe que está aos poucos perdendo força e terreno no mundo moderno mesmo que consiga manipular as mentes fracas através de sua ideologia do milagre. A destruição da igreja cristã está logo ali se não fizermos nada.
“Deus morreu” por que o cristianismo o tornou insuportável para a modernidade. O homem contemporâneo ao pensar em Deus traz a memória tudo aquilo que ele representa historicamente: morte nas Cruzadas, estupros de índias na mesoamerica por cristãos católicos, fundamentação da animalidade do negro negando sua humanidade... Todas essas coisas fazem a humanidade se questionar e indagar: Pra que precisamos ainda de Deus? Nietzsche diz em sua obra crítica “O Anticristo” coisas que nos fazem pensar o porquê de seu descontentamento com o cristianismo:

Até agora os padres reinaram! Determinaram o significado dos conceitos de “verdadeiro” e “falso”![1]
O idealista, assim como o eclesiástico, carrega todos os grandes conceitos em suas mãos (e não apenas em sua mão!); os lança com um benevolente desprezo contra o “entendimento, os “sentidos”, a “honra, o “bem viver”, a “ciência” vê tais coisas abaixo de si, como forças perniciosas e sedutoras, sobre as quais o “espírito” plana como a coisa pura em si.[2]
Todos os métodos, todos os princípios do espírito científico de hoje foram alvo, por milhares de anos, do mais profundo desprezo; caso um homem se interessasse por eles era excluído da sociedade das pessoas decentes – passava por “inimigo de Deus”, por zombador da verdade, por “possesso”. Enquanto homem da ciência, pertencia à Chandala[3].[4]

                  Nietzsche observa a história do cristianismo e responde ao homem moderno que sempre questiona a importância de Deus: Não! O homem não precisa mais de Deus. O homem precisa de si mesmo. Do Übermansh (além homem). Nietzsche desenvolve uma filosofia do ressentimento, da revolta, contra a práxis da igreja cristã desde suas origens chegando a afirmar tenazmente que “o ultimo cristão morreu numa cruz”. Para ele não houve quem conseguisse seguir os ensinos de Jesus. Sempre numa época ou outra aquela que se vê como sua portadora distanciara-se cada vez mais do propósito original de Jesus. Para Nietzsche a igreja abandonou os princípios jesuânicos de real amor e fraternidade para com o outro para se apegar ao poder político que recebeu com Constantino e dá manutenção até o presente século. Ao se aliar ao poder político-econômico de seu tempo em detrimento da práxis de amor, ao abraçar o poder mais que a doação caridosa, a igreja cristã perdeu o sentido para o mundo não sendo mais necessária, pois não sustenta mais a ideologia do Cristo, mas o da igreja.  
                Nietzsche tem a igreja cristã como um estado doentil da realidade pensativa e existencial humana. A igreja patologizou o ser transformando-o naquilo que ele mesmo denominou de “espírito de rebanho”. Os crentes são ensinados e doutrinados a serem idiotizados pela igreja e não reagirem. São disciplinados a se manterem em estado estático diante da violação que infringem ao humano. Ordena morte de pessoas, sustenta e manipula suas riquezas em Roma em prol do aparato político necessário para continuar como a maior religião do Ocidente e, ensinam aos crentes a verem tudo isso com naturalidade. E as pessoas aceitam e concordam por que foram disciplinados, segundo Nietzsche, a terem este “espírito de rebanho”. Por isso, Nietzsche desponta como uma voz de denúncia dos poderes eclesiais sobre a humanidade. Essa voz é gritante principalmente para a igreja cristã que tem Nietzsche como um destruidor da religião, porém no mesmo Anticristo Nietzsche propõe não uma aniquilação do fenômeno religioso, mas do uma dissolução do cristianismo que se mostrou uma vergonha para a humanidade.

Sem dúvida, quando uma nação está em declínio, quando sente que a crença em seu próprio futuro, sua esperança de liberdade estão se esvaindo, quando começa a enxergar a submissão como primeira necessidade e como medida de autopreservação, então precisa também modificar seu Deus.[5]   

                  Eis a solução para essa vergonha: mudar nosso conceito sobre Deus. Se o Deus que foi apresentado até aqui não satisfaz plenamente a humanidade de forma a conduzi-la a um sentimento de espiritualidade libertadora, feliz, e gratificante, ao invés de doutrinas que prometem a “liberdade de Cristo”, mas se tornam prisões mais rígidas do que aço, deve-se ir ao encontro daquele que nos prometeu a verdadeira liberdade (João 8.36). Faz-se necessária uma recuperação de Deus e do próprio conceito de igreja como eklésia, como lócus de uma comunhão que abre os olhos do ignorante para a realidade como ela é como fez Jesus. A igreja deve ser esse espaço de transformação social e não se tornar o que sempre foi: maculadora da sociedade. Prejudicadora dos homens. Não por acaso Nietzsche expressa: “O cristianismo de fato nega a igreja”.[6]
                A fim de que a igreja retorne ao seu sentido original, à proposta ética do Salvador, Nietzsche nos traça um caminho, uma esperança que faz brilhar essas densas trevas em que a igreja se perdeu: a recuperação do sentido de Reino de Deus. É no Reino de Deus que Nietzsche desempenha um papel significativo para nós cristãos. Para mim foi o único que conseguiu ler esta proposta de maneira mais sapiente.    
                A compreensão de Nietzsche sobre o “Reino de Deus” é o que podemos chamar aqui de circunstância necessária para a salvação do sentido da igreja cristã e respectivamente dela mesma. O cristianismo sofre uma crise sem precedentes na história da humanidade. Do humanismo do século XV à contemporaneidade pode-se notar de que forma vai ocorrendo o esfacelamento da religião cristã. No decorrer das épocas surge cada vez mais pensadores descontentes com a forma de se produzir religião da igreja cristã. Esse esfacelar é gradativo, consume-se paulatinamente à medida que o homem com muito cuidado e provas eficazes vão desfazendo os arcaicos ditos doutrinários da igreja sobre sua fé mórbida e política.
No parágrafo XXXIV de o Anticristo nosso revolucionário autor analisa o Reino de Deus dizendo que “nada poderia ser mais acristão (...) que um Reino de Deus vindouro, de um Reino dos Céus no além (...). Isso tudo, perdoem-me a expressão, é um soco no olho”. Nietzsche percebe no conceito de “Reino de Deus” não uma realidade metafísica, não um porvir, não uma idéia, mas uma realidade concreta que deve se manifestar no concreto. O Reino de Deus que Jesus ensinara a seus discípulos então é algo que faz parte e é existência e não essência como a igreja cristã interpretou durante todo esse tempo.  Jesus mesmo disse em Mateus 3.2 “O Reino dos Céus é chegado”. E é nesse sentido que Nietzsche esboça as seguintes palavras:

O “reino dos céus” é um estado de espírito – não algo que virá “além do mundo” ou “após a morte. (...) O “reino de deus” não é uma coisa pelo qual os homens aguardam: não teve um ontem nem terá um amanhã, não virá em um “milênio” – é uma experiência do coração, está em toda parte e não está em parte alguma...[7]   

                Em outras palavras o que Nietzsche quer dizer é que o Reino de Deus que Jesus fala não é o céu. Esta é uma feliz interpretação do conceito de Reino de Deus. Esta proposta genial de Jesus é um “estado de espírito”, ou poderíamos denominar também de ética. Essa ética não é qualquer tipo de ética, mas é a recuperação do sentido grego que confere o real significado da palavra: ética para os gregos era ethos casa comum. Essa casa constitui não uma construção de tijolos e cimento, mas do próprio ser como ser em busca de um bem viver. Nietzsche compreende essa realidade supra-ética como algo que se deve seguir, se imitar, se espelhar. O homem deve seguir tais passos para se tornar um Übermensch: os passos do Salvador. Pois, “seu legado ao homem foi um estilo de vida”.
O Reino de Deus passa a ser re-significado retornando ao sentido originário da proposta de Jesus trazendo uma profunda reflexão para a igreja cristã de hoje. Nietzsche faz a igreja questionar como tem sido sua prática diante da proposta ética de Jesus e dessa forma, tomar novas posturas distintas das antigas percebidas na antiguidade, no medievo e na contemporaneidade. A igreja a partir daí se vê como impulsionada a ir em busca de sua “pedra angular” de seu fator fundante dessa mensagem de Jesus. É a igreja saindo do mero cristianismo e se tornando igreja no autentico sentido que Jesus conferiu a esse termo.



[1] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. Parágrafo XII
[2] Ibid. Parágrafo VIII.
[3] Chandala é a casta mais baixa no sistema hindu.
[4] Ibid. Parágrafo XIII.
[5] Ibid. Páragrafo XVI.
[6] Ibid. Parágrafo XXVII.
[7] Ibid. Parágrafo XXXIV.

AFORISMO II

“Tenho todos os motivos para abandonar minha religião e um que ainda faz-me crer nela: A caridade”. Dalmo S.

VIVENDO A VIDA...







A vida corre mais do que conseguimos nos esforçar,
Nossos passos apesar de firmes são frágeis diante da realidade que nos rodeia
Por isso, tudo nos surge como estranho quando novo
Mas é no novo que nasce as mais belas experiências da vida
Ainda que as mesmas não sejam tão boas como desejamos,
Mas apenas em ter a plenitude de existir e o dom de viver
Tudo passa a valer a pena. A vida nos faz ver que vale a pena.
E isso não finda numa beleza da vida em mim mesmo,
Mas principalmente quando compartilhamos aquilo que temos
E ensinamos outrem a viver melhor do que antes.  

AFORISMO I

"O ateu fecha-se no que vê do é. O crente transcende o que vê no é. O fanático se perde num pseudo é". Dalmo Santiago.

O REGRESSO DA ALMA: NOVAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A DICOTOMIZAÇÃO DA REALIDADE EM SANTO AGOSTINHO





* Dalmo Santiago



         Este texto vem com objetivo de refletir sobre o pensamento agostiniano de forma nova desestruturando algumas compreensões errôneas acerca desse pensador influenciador de toda a Idade Média. Historicamente está situado na Antiguidade Tardia em fins do século IV e inicio do V. Partir-se-á da idéia de Regresso da Alma para destacar alguns elementos significativos do pensamento agostiniano desmistificando alguns pontos que são erroneamente compreendidos por aqueles que se detém no estudo dessa figura filosófica e teológica notável. Dessa forma, criaremos uma linha de raciocínio que finca o Regresso da Alma como norteador para as reflexões que Agostinho produziu. É importante destacar que Agostinho numa perspectiva platônica e plotinina da realidade centraliza em sua discussão a questão do regresso da alma identificando a anima como elemento do transcendente e do ideal e a corpore como situação no sensível para assim compreender melhor o que o pensador a ser refletido traz sobre a questão da espírito e da matéria.
         Agostinho reflete sobre o Regresso da Alma com bases na obra de Porfírio que se utiliza desse termo como título realizando um profundo pensamento sobre a anima e a corpore. Porém, ao analisar seu pensamento, muitos estudiosos, em sua maioria, tem confirmado a idéia de que Agostinho via na corpore o inferior, o ínfimo, e por isso um claustro para a anima. Moacyr Novaes, professor de filosofia Patristíca e Medieval da USP, parece discordar desse modo de pensar o Regresso da Alma de Agostinho. Ele afirma que o mesmo defendia que a alma sempre deve desejar voltar a seu lugar de origem. Isso seria um se libertar. Mas segundo Novaes, ele nunca condenou a natureza corpórea nem mesmo a entendia como claustro da alma ou natureza má. Nisso concordo com Novaes.
         O pensamento agostiniano abre um novo sentido da compreensão de Regresso da Alma que não estava claro ainda. Ele contribui para a filosofia quando afirma que para que o homem consiga encontrar a verdade de forma filosófica é necessário que não haja um desprestigiar nem da alma nem do corpo, nem da idéia, nem da matéria, mas uma síntese entre ambas. Esse pensamento rompe com a idéia de que a priori a alma deveria ser purificada do corpo para obter o conhecimento acerca da verdade. Para se conhecer o que é verdadeiro era necessária essa síntese que ia contra a opinião maniqueísta. 
         Para os maniqueístas o pensamento humano deveria considerar as coisas ínfimas, inferiores da realidade para a obtenção do conhecimento verdadeiro. Isso seria um limitar-se a inferioridade do corpo e da matéria. Agostinho afirmando a síntese já dita se posiciona contra o maniqueísmo possibilitando um conhecimento mais eficaz já que o mundo sensível é sombra, imagem do inteligível e, compreendendo ambos os mundos se teria uma visão mais ampla e detalhada sobre as coisas, adquirindo assim um conhecimento melhor e eficaz possibilitando um alcançar da verdade. 
         A idéia de dicotomização antitética da realidade é ainda presente no pensamento agostiniano, segundo as estruturas basilares do platonismo, isso não se pode negar. Agostinho aceitava a idéia de que a realidade concreta, o mundo sensível de Platão, era a sombra das coisas inteligíveis, do céu. Porém, isso não deve ser levado a uma compreensão de negação do corpo ou da existência como na maioria das vezes se refere a ele.       É claro que isso vai trazer conseqüências no aspecto moral da época onde está inserido.
         É na Idade Média que os escritos de Santo Agostinho terão seu receptáculo maior. A Igreja passou a desenvolver todo um sistema de leis morais e éticas fundamentado na filosofia agostiniana. Produzindo uma leitura errônea de seus textos a Igreja passa a ser negadora de toda a realidade existente na concretude valorando o além mais que o aqui. Isso fez com que, a partir dessa compreensão, a igreja cristã fosse se distanciando do mundo e se desresponsabilizando. Aos poucos isso foi ocasionando na alienação da mesma, pois, a Igreja passou a se preocupar com coisas supraterrestres e não com a realidade humana. 
         Isso claro influi no modo de se produzir ética na Igreja já que a mesma irá, através da dicotomização antitética entre corpo e alma, estabelecer uma ética anti-corpo, anti-prazer. O corpo passa a ser considerado o lócus do mal ontológico. É nele que se possui a fraqueza do pecar, do agir segundo as paixões, voltando-se aos vícios. Por isso se prega uma vida de castidade, de pureza espiritual voltada a uma sublimação dos desejos, àquela sublimação freudiana. Negando os desejos o ser humano nega sua humanidade, seus instintos como Nietzsche falara em seu O Anticristo. Isso gera um problema no Mundo Ocidental: a alienação patológica.
         Creio ser necessário trazer uma reflexão nova sobre Agostinho que aclarareará acerca de seu pensamento sobre corpo e alma. Agostinho não defende que o corpo é lócus do mal, mas que ao se inclinar mais ao corpo, à carne, o homem se deixa levar unicamente pelas paixões, o que faria com que o mesmo fosse prejudicado. O bispo de Hipona cria uma síntese entre esses dois elementos, idéia e matéria, antes antagônicos. Sintetizando esses elementos obtém-se uma compreensão mais holística das coisas e da própria vida. O que penso é que a partir daí que devemos encontrar uma solução para a problemática da perspectiva fechada da moralidade cristã. 
         Pensando na visão agostiniana, no que se refere a uma síntese do que é inferior ao superior, podemos raciocinar um novo modelo de ética em Agostinho. A vida conflui não em uma perspectiva monolítica, mas pluralista, e aqui poderia dizer mais resumidamente dual. A vida é repleta de significações conceituais acerca de tudo. Não quero debater no momento se as conceituações são formas leais de se compreender a natureza das coisas como Nietzsche negou em sua filosofia. Essas significações surgem numa dicotomização do tudo: bem-mal, belo-feio, alto-baixo, largo-curto etc. Viver a vida escolhendo apenas um dos lados dessa dicotomia, afirmando ser essa a forma verdadeira de se viver, é fechar-se num entendimento incompleto da vida. É ver a vida e vivê-la apenas por um lado não percebendo as demais outras coisas que fazem parte desta e lhe conferem sentido. Agostinho não concordava com isso.
         Para o Agostinho as coisas que se entende como desprezíveis são importantes para poder ser entender as coisas perfeitas já que tudo é produto do intelecto criativo de Deus. Seria interessante nós abordarmos aqui sobre o texto de Isaías 45:7 que diz: “Eu formo a luz, e crio as trevas; eu faço a paz, e crio o mal; eu, o SENHOR, faço todas estas coisas”. Se Deus é criador de todas as coisas e também do mal então nasce uma nova moral distinta da cristã eclesial, não mais da negação dos paradoxismos considerados negativos, mas da aceitação. Já que Deus é o criador de todas as coisas e também do mal, para poder se chegar a ele, de quem verdadeiramente ele é, torna-se preciso que haja uma aceitação daquilo que antes se entendia por desprezível: mal, feio, curto etc. Assim até mesmo as significações mudam e passam a não mais serem consideradas inferiores, mas tão necessárias quanto aquelas aceitas como superiores.  
         Esse pensamento seria uma forma de perceber a vida em sua totalidade, em sua complexidade e pluralidade. Não há uma mistura de mal e bem, mas uma necessária e indissociável relação entre ambos. Isso é do humano, é ele quem convive com esses paradoxismos existenciais e diante deles deve tomar alguma posição. Porém nunca deve haver uma exagerada inclinação a uma realidade mais que outra. Buscar o equilíbrio, no sentido aristotélico da palavra, deixando-se ser levado a experiência dessa dicotomização à medida considerável de cada realidade, é a atitude mais coerente para o conhecimento mais próximo, ou por que não dizer real das coisas e do próprio sentido de viver um bom viver. 

AUTORIDADE E AUTORITARISMO: UMA ANÁLISE TEOLÓGICO-BÍBLICA SOBRE AS AUTORIDADES INTRA-ECLESIAIS



* Dalmo Santiago



Tratar do seguinte tema é coisa ao mesmo tempo fascinante, mas também muito perigosa. Fascinante por que quando adquirimos o verdadeiro sentido da palavra autoridade nas Escrituras recebemos ao mesmo tempo um chamado ético para desempenhar tal autoridade. Mas, por outro lado uma abordagem sobre o tema é de alta periculosidade para quem se detém a refletir sobre o mesmo proposto no âmbito intra-eclesial. Esse perigo advém de uma circunstancia que foi fixada e estabelecida na mente daqueles que fazem parte da igreja: a instituição supra-sagrada de uma autoridade vocacionada por Deus para liderar seu povo. Na realidade isso não constitui o teor do problema, porém, é nessa situação que reside perigos iminentes que atualmente tem se despontado na prática pastoral.
O pastor vocacionado por receber um chamado de liderar e automaticamente uma autoridade que o destaca na comunidade religiosa começa a confundir a autoridade posta sobre ele pela igreja com um autoritarismo. Sendo assim aquilo que deveria ser um elemento para desempenhar um serviço eficaz e amoroso de acordo com os princípios bíblicos da diaconia, humildade e honestidade diante de Deus, passa a ser instrumento de opressão da igreja por parte do pastor que se alia aos ditames desse autoritarismo de si. Infelizmente é isso que percebemos na maioria dos pastores atuais.
Alguns líderes pastorais têm um grande medo que eles mesmos deixam transparecer sem saber: o medo de perder o poder. Dentro de sua igreja estes pastores sentem-se ameaçados o tempo todo por alguma investida que possa vir da igreja contra sua autoridade. O medo de perder o poder vem de diversos fatores: perda de remuneração, preocupação com o sustento familiar, diminuição do poder aquisitivo, exclusão social, pobreza etc. Mas o maior fator não é esse, e isso é o que preocupa, aquilo que na verdade o pastor teme recorrendo ao autoritarismo é o poder de influenciar os outros em beneficio próprio. Apesar de o discurso ser aparentemente voltado a um bem da comunidade não passa de fachada bem articulada que esconde a verdadeira intenção desse tipo de sacerdócio: ser beneficiado em detrimento dos outros. São essas coisas que passam na mente de um pastor inseguro com sua igreja. Daí nasce um tipo de defesa incoerente a uma vocação dada por Deus: o autoritarismo. Isso porque toda forma de autoritarismo suprime o amor.  Mas antes de nos aprofundar nessa discussão tentemos entender qual a diferença entre autoridade e autoritarismo.
Antes de qualquer coisa é importante colocar em plano que filologicamente tanto a palavra autoridade como autoritarismo nascem de uma raiz altamente egóica: ‘autos’. O autos remonta a idéia um poder que se obtém por si mesmo e não no respeito a decisão das pessoas, ou seja, é uma imposição que a própria pessoa faz para que outros aceitem sem a oportunidade de opinar se querem ou não essa pessoa sobre eles como algum tipo de governo. Mas, com o passar do tempo a idéia de “Autoridade” vai adquirindo novos conceitos e significados que perpassam por uma atitude ética e relacional. Autoridade nesse segundo momento é ser investido por uma pessoa ou grupo de pessoas de capacidade para estar liderando pessoas. É importante salientar que não significa estar acima de alguém, mas no mesmo plano, ser apenas um orientador para que as mesmas consigam trabalhar com efetividade e ao mesmo tempo satisfeitas. Nesse sentido uma autoridade não pode se entender melhor ou maior, ou com privilégios ilimitados diante das pessoas. Como qualquer um ele é um ser humano e precisa se comportar como tal.
O autoritarismo é diferente. É uma transmutação de autoridade em totalitarismo, em circunstancia ditatorial. Nesse caso a pessoa que é investida de autoridade torna-a um fim em si mesmo. A autoridade-para-a-autoridade e não para o bem das pessoas. No autoritarismo a autoridade é usada para o bem de si mesmo. O autoritarismo é egoíco por natureza. Um líder que baseia sua autoridade em autoritarismo só pensa em seu bem em detrimento do bem de outras pessoas. Não importa o que as pessoas sofram, mas o bem do autoritário é sempre importante para ele apenas. No caso da igreja o pastor que assim age tem a igreja como um instrumento de suas satisfações pessoais: ser influente, ter voz num grupo social, ter poder sobre outras pessoas, mandar e ser obedecido. Não se tem nenhuma evocação de sentimento e amor pela pessoa que ele lidera, a pessoa torna-se para o pastor autoritário mera peça de seu quebra-cabeça: peça para satisfazer suas vontades.
Entendendo essa diferença poderemos compreender o polêmico texto de Romanos 13. Digo ser polêmico por que o mesmo tem sido usado em larga escala por líderes autoritários para fundamentar práticas que são contrárias as Escrituras Sagradas. Não são poucos os pastores que, ultrapassando os limites da moral e da decência, utilizam desses textos afirmando ser sua autoridade inquestionável. É preciso que se compreenda algo: Uma autoridade que não se pode questionar não é mais autoridade transmuta-se em autoritarismo. Seguindo essa linha de raciocínio fugimos da proposta de liderança trazida por Jesus em sua própria vida com seus liderados e voltamos ao dogmatismo ortodoxo farisaico que tanto o mestre combateu. Jesus se mostrou aberto e amigável em sua relação com seus discípulos mostrando até mesmo o desejo de saber que opinião tinham sobre ele (Mateus 16.13). A autoridade de Jesus assim como sua liderança se basearam no diálogo da fraternidade. Numa liderança do amor, que apesar de ter um poder a mais que eles não se colocava acima deles, mas ao lado ajudando-os a encontrar o caminho do Reino de Deus.
Façamos algumas analises e questionamentos ao texto de Romanos 13 para aprofundarmos nossas discussões. Diante do texto:
1º Devemos ser sujeitos às autoridades ou aos autoritários?
2º Como identificarmos no texto a distinção entre autoridade e autoritarismo?
3º Diante de uma “autoridade” corrupta devemos nos calar esperando a justiça de Deus sobre ela ou como agentes transformadores exigir mudanças?
Quero refletir nessas perguntas e enfim finalizar nossa reflexão.
O texto de Romanos 13 é claro: Devemos ser sujeitos a toda autoridade instituída por Deus. Entendemos então que nossa obrigação é de estarmos sujeitos às autoridades e não aos autoritários. Por que devemos ser sujeitos a essas autoridades? Romanos 13.4 diz: “Por que ela é ministro de Deus para o teu bem”. Aqui entramos na resposta da segunda questão. Identificamos que Paulo se refere claramente a uma autoridade que visa o “bem” e não o mal das pessoas. Relembrando: uma autoridade que pensa em seu bem (e não no das pessoas) se transmuta em autoritarismo. Diferenciamos uma autoridade de um autoritário pelo elemento do “bem”. Um pastor que pensa em seu bem, no bem de sua igreja, no bem de sua vida financeira, no bem de sua fama social prejudicando outras pessoas deixa de ser uma autoridade e passa a ser um autoritário.
A terceira questão agora fica mais facilmente de responder. É claro que não devemos nos calar sendo convenientes, apoiando “autoridades” corruptas, por que elas não são mais uma autoridade, mas um autoritarismo fundamentado num bem próprio e não dos outros. E deveríamos deixar que um pastor autoritário fizesse seus erros sem irmos contra suas práticas? Há doutrinas que ensinam que sim. Dizem estas que a autoridade dada por Deus é algo inquestionável e deve ser obedecida cegamente ainda que nos leve ao erro e ao pecado. Creio que essa leitura do texto é fazer da sabedoria libertadora da Escritura uma ignorância interpretativa enclausuradora formadora de massa de manobra.
É importante conjuntamente atentar que nem sempre Deus dá autoridade a alguém por que quer, mas por que foi de certa maneira “forçado” a concedê-la àquela pessoa. Com isso não quero dizer que Deus perde seu poder para ser guiado pelos caprichos humanos, mas ele respeita o principio do livre-arbítrio, ou seja, o meu poder de decisão sobre as coisas. Um texto que alude a isso é o de I Samuel 8.5-7. Deus havia instituído Samuel como juiz em Israel, essa foi a vontade de Deus, mas o povo quis uma outra autoridade sobre eles: um rei humano. A pergunta a ser lançada é: Saul estava nos planos de Deus para reinar em Israel? Certamente não. O desejo de Deus era que Samuel continuasse até sua morte e no tempo certo seria escolhido o novo lider, porém, o povo disse em outras palavras: “Queremos um rei Samuel e não o que Deus quer”. Saul foi escolhido como autoridade, pois foi ungido e a unção representava o investimento de autoridade dado pelo povo à pessoa escolhida, mas percebemos no decorrer da história que Saul não foi um bom exemplo de líder. Saul confundiu sua autoridade com autoritarismo. Passou na frente de Deus desobedecendo a ordem de não deixar nada vivo dentre os do povo do rei amalequita Agague (I Samuel 15.3). Reinava segundo a sua presunção de se achar bom rei. Saul se fechou em seu trono até que enlouqueceu e foi atormentado por espíritos malignos (I Samuel 16.14). Algo chama-me a atenção no texto de I Samuel 15: Quem depôs Saul do trono? Deus. Através de quem? Samuel. O profeta filho de Ana deveria se dispor a ouvir a voz de Deus que não apenas soava no ouvido de Samuel como na sua infância (I Samuel 3.3-4), mas no observar das coisas que estavam acontecendo. Samuel foi desafiado por Deus a ir até Saul e dizer: Saul teu tempo acabou (I Samuel 15.28). Interessante é que deste mesmo texto surge um versículo usadíssimo para fundamentar o pastorado fundamentalista. Em I Samuel 15.23 “Por que a rebeldia é como o pecado de feitiçaria”. Os pastores que usam esse texto para fundamentarem suas lideranças errôneas não entenderam que Samuel está dizendo o contrário do que eles interpretam para bem próprio. Samuel estava contra a autoridade corrupta de Saul e disse: “A rebeldia é como pecado de feitiçaria”. Era a autoridade que era rebelde a Deus e não Samuel. Esta idéia está baseada em Atos 5.29: “Mais importa obedecer a Deus do que aos homens”. Samuel poderia dizer: “Não vou falar nada mesmo sentido de Deus que Saul está desobedecendo a Palavra”, mas não foi isso que ele fez. Samuel entendia que ele tinha uma responsabilidade para com Deus e para com seu próximo não podendo deixar que o povo fosse enganado por Saul. Nós temos a mesma responsabilidade hoje na igreja de não nos conformarmos com coisas erradas de nossas lideranças, mas de exigir delas mudanças imediatas para que a igreja cresça de forma saudável e equilibrada.
O mesmo Paulo que escreveu Romanos 13 também produziu o texto de Romanos 12.2 “Não sede conformados com este mundo”. Neste texto o Apóstolo da Fé nos ensina que não podemos nos conformar com as atitudes provenientes do mundo e o autoritarismo é uma delas. Não se conformar significa não se amoldar, não ser omisso ao erro, mas denunciar o erro e exigir que haja mudanças. Se conformar com práticas erradas é concordar tacitamente com elas. É apoiar o erro alheio. Por isso, nossa igreja atual é imatura: não sabe exigir seus direitos, por que não sabe quais são esses direitos e nem quer saber. Muitos pensam: “Importa que eu participe dos cultos e campanhas de oração. Não quero saber se meu pastor está agindo certo ou errado para com Deus. O que quero é minha benção!”.

AMOR PELO POVO OU REBELDIA?
                Para finalizar gostaria de refletir sobre três pessoas que decidiram não se encurvar aos ditames de autoridades corruptas e foram tidos como grandes homens de Deus. O primeiro foi o Sábio Daniel e também seus amigos Sadraque, Mezaque e Abdinego (Desobedeceram a ordem do Rei Nabucodonosor). O segundo foi Elias (desafiou Acabe com “sua palavra” ordenando o cessar das chuvas contrariando também Jezabel (Adoradora de Baal e Ashera deuses da chuva e da feritilidade)) e finalmente Jesus (chamando seus líderes espirituais os fariseus, os escribas e os sacerdotes de hipócritas, raça de víboras e sepulcros caiados).
                Os primeiros personagens citados acima estão relacionados no livro do profeta Daniel 1 e 3. O primeiro capítulo narra a escolha de Daniel e seus amigos para servirem na corte de Nabucodonosor. Ali Nabucodonosor ordena como autoridade dos novos escravos que eles comam dos manjares do rei. Apesar de Nabucodonosor ser autoridade constituída por Deus Daniel e seus amigos não obedeceram o monarca. Mas, por quê? É preciso entender que culturalmente os alimentos preparados na Babilônia eram antes do consumo consagrados aos ídolos. Daniel não poderia suportar tal abominação então negou comer aquela comida mesmo sabendo que estava desobedecendo sua autoridade. Seríamos ousados ao ponto de chamarmos Daniel de “rebelde”?
Elias percebendo a prostituição espiritual que Acabe iniciou trazendo deuses estranhos como baalins e astarotes para Israel disse segundo sua palavra: “Não cairá chuva neste lugar até que Acabe, Jezabel e Israel abandone seu pecado”. Em I Reis 17.1 Elias é tão ousado com Acabe que diz: “Segundo minhas palavras”.  Acabe casou-se com Jezabel desobedecendo a proibição de casamentos mistos, trouxe baalins à Israel, construiu um templo a Baal e ainda um ídolo (I Rs 16.29-33). Muitos israelitas passaram a freqüentar o templo dedicado a Baal e cultuaram o ídolo feito por Acabe assim como muitos tem aceitado os ídolos da mentira, do engano, da hipocrisia, do roubo de vários lideres que se dizem pastores. Mas, surgiu um que disse: “Eu não vou me aliar a esse sistema mundano dentro da igreja”. Elias se levantou contra Acabe, sua autoridade, por que agia errado levando o povo a pecar contra Deus através de suas ações pecaminosas. Elias não estava conformado com que via até que disse usado pelo Senhor (I Reis 21:19):
19 - E falar-lhe-ás, dizendo: Assim diz o SENHOR: Porventura não mataste e tomaste a herança? Falar-lhe-ás mais, dizendo: Assim diz o SENHOR: No lugar em que os cães lamberam o sangue de Nabote lamberão também o teu próprio sangue.

                No versículo 20 vemos a complementação do versículo. Acabe se sente ofendido por Elias e pergunta: “Você agora é meu inimigo?”. E Elias responde: “Sim! Porque você não está obedecendo a Deus”. Tiago 4.4 diz que a amizade do mundo é inimizade contra Deus. Aqueles que vivem de acordo as ações do mundo constituí-se inimigo de Deus. Um líder que age como Acabe vive as regras do sistema-mundo. Sua autoridade não se preocupa com os outros, apenas consigo mesmo. Torna-se autoritarismo.
                A ultima pessoa e mais importante nesse caso é Jesus. Jesus desempenhou um papel de ensino para conosco. O bom mestre através de sua vida mostrou como deve ser um pastorado: amando as pessoas, usando sua autoridade não em favor de si ou de sua fama, mas de outrem, respeitar seus liderados ensinando-os a respeitar os outros. Há diversos textos que mostram o quanto Jesus se preocupava como ocorria o exercício das autoridades religiosas de sua época. Jesus andava pelos lugares mostrando ao povo quem eram os falsos pastores e assim ia contra sua autoridade espiritual . Como os fariseus eram tidos como pastores em Israel e líderes espirituais Jesus os combateu por causa de sua prática pastoral autoritária.
Em Mt 23.23-27 Jesus chama seus líderes de “hipócritas”, “cegos” e “sepulcros caiados”.
Mateus 23:23-27 e 33
23 - Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que dizimais a hortelã, o endro e o cominho, e desprezais o mais importante da lei, o juízo, a misericórdia e a fé; deveis, porém, fazer estas coisas, e não omitir aquelas.
24 - Condutores cegos! Que coais um mosquito e engolis um camelo.
25 - Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que limpais o exterior do copo e do prato, mas o interior está cheio de rapina e de iniqüidade.
26 - Fariseu cego! Limpa primeiro o interior do copo e do prato, para que também o exterior fique limpo.
27 - Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda a imundícia.
Mateus 23:33
33 - Serpentes, raça de víboras! Como escapareis da condenação do inferno?

O que Jesus estava fazendo falando tantas coisas pesadas para seus líderes? Ele estava sendo rebelde a eles? Não! Jesus tinha um compromisso com o Pai de não ser conivente com os erros de seus líderes, mas levá-los a uma mudança de atitude e não ficar concordando com os erros dos mesmos.
Creio que o tempo é chegado da igreja amadurecer como um todo e entender que pastor serve pra servir e não ser servido como muitos deles pensam. São raros os líderes que têm se dedicado a uma vida de amor ao próximo e compromisso com a humanidade da igreja. Pensam muito no patrimônio de suas igrejas dentre outras coisas. Jesus nos deu uma missão de levar o amor ao mundo enquanto temos nos preocupado com grandes e suntuosos templos cheio de pessoas vazias que não cumprem a missão dada por Jesus, apenas freqüentam cultos. Espero que esse texto venha ser tanto um instrumento de libertação das mentes cativas e dominadas por doutrinas pastorais fora da Bíblia como conteúdo de reflexão para os pastores que desejam assumir uma nova postura diante de Deus e de sua comunidade.  



PAIXÃO

O ser racional se torna irracionalizado
Não pensa em mais nada, apenas em si e no objeto de sua paixão
Se perde nos devaneios da ignorância
Morre sem saber vivendo a morte todos os dias
É a prova mais substancial da infantilidade do ser, 
A prova mais cabal da idiotia que ainda lhe resta
Lançar-se nela é tornar-se idiota a ponto de reestabelecer-se em sua animalidade mais primitiva
Mais profunda... Nasce a violência
Daí vir os sentimentos mais primitivos e animalescos, retornam aos mesmos instintos que ainda torna o homem um ser desprezível.
São possuídos pelo demônio da objetalização do ser: aquele sentimento intrínseco dos débeis de pensar serem donos do outro. Sentem-se possuidores do outro da relação: Meros débeis. 
Estão correndo atrás do vento e logo ali serão destruídos por si mesmos,
Pelos sentimentos de raiva, rancor e ira que portam em suas mentes doentias
Sou sábio e trago uma cura aos enfermos passionais: Uma meia doze de razão e de amor.
Não se confunda amor e paixão. No humano a paixão pode ser doentia e saudável, é dicotômica 
Cabe ao ser escolher qual das duas modalidades seguirá, mas isso é para os maduros, os que não se deixam contaminar com a primeira opção: infelizmente a primeira é a mais requisitada.
Escapar da paixão é coisa para os fortes, para os sapientes, para os que compreendem que mergulhando uma vez nesse rio não se volta a ser como antes, 
Essas águas penetram o ser até as suas mais profundas feridas, abrindo-as e dilacerando-as... 
Ferindo-as novamente
É um eterno retorno a idiotia desmesurada
A morte de si mesmo sendo.


                                                                 Dalmo Santiajo Jr  



O CIRCO DO SER

Talvez todos estejam certos e o mundo seja dos palhaços
Seja do "pão e circo" romano e brasileiro
Seja do picadeiro e da picaretagem
Seja das risadas da própria miséria: o sabor da comiseração 
Seja dos malabarismos que estes mesmos palhaços precisam fazer todos os dias para arrancarem aplausos dos outros palhaços espectadores.
Talvez todos estejam certos e o mundo seja dos palhaços e continuamos o mesmo show.
Deixar de sê-lo é motivo de chacota, é para poucos. 
Ir contra a brincadeira e palhaçada é seriedade de mais, é levar a vida debaixo de muito pudor!
Bem, é o que eles dizem de seus picadeiros: "Lá vai mais um sair do malabare e arrancar a máscara pintada para fazer algo diferente!"
Libertar os palhaços de seus circos é muito dificil, a maioria deles gosta do que faz.
Sente prazer no drama circense, não deseja lutar 
Principalmente quando o circo já mora no palhaço, ou pior,
Quando o palhaço já é o próprio circo. 


                              Dalmo Santiago Jr
  
                   

                                                                                                                                                                                                                                    

DEUS É LÍQUIDO: EVANGELIZAÇÃO COMO IDENTIFICAÇÃO DO SAGRADO NAS CULTURAS HUMANAS



Falar sobre evangelização no presente momento tem sido desafiador para a igreja cristã em suas diversas denominações católicas ou protestantes por representar significativa dificuldade no que diz respeito à penetração de outras culturas. O processo evangelizatório da negação efetuada pelos primeiros missionários que chegaram ao litoral americano, o avanço cientifico e tecnológico, a maior compreensão de outros povos e seu fortalecimento cultural diante da onda cristã configuram-se em obstáculos rígidos quase que impossíveis de superar.
O cristianismo vive numa crise sem precedentes. Termos como: espiritualidade, fé, amor ao próximo, graça, misericórdia, são deixados de lado por serem propostas antitéticas a verdadeira prática da igreja na dinâmica intra-social. Porém, mesmo nessas condições, a igreja possui uma ordenança vinda do próprio Jesus segundo (Mc 16:15) “Ide por todo mundo e pregai o evangelho a toda criatura”.
Mas como evangelizar nesses “tempos modernos”, ou como alguns apressados já consideram “pós-modernos”? Como penetrar em culturas tão sólidas e complexas como as islâmicas, chinesas e russas? Não é possível mais sustentar as pretéritas formas de missão da negação cultural de outrem. Na verdade até mesmo no que se refere à terminologia “missão” tenho grande dificuldade de manter esse código como positivo. Missão traz a mente uma idéia de guerra, de conquista, de exploração, de negação, de morte. Não é a toa que possui seu lugar na linguagem belicosa dos poderes de defesa nacionais. Assim proponho uma nova forma de missão, tirando-se primeiramente tal conceito negador substituindo-o por “Integração”. 
Para continuar essa reflexão gostaria de pensar uma alegoria que pensara ao raciocinar sobre a temática apresentada. Imagine um homem da zona rural que toma um recipiente nas mãos cheio de um líquido nutritivo e que começa a derramá-lo sobre o solo fértil (húmus). Nesse solo já havia semeado sementes de diversos tipos de arvores e semelhantemente, em mesma medida, regou-as com àquele líquido. Passado algum tempo as sementes germinaram saudáveis, desenvolveram-se em árvores frondosas e frutíferas. 
Pensando sobre a alegoria é possível tirar elementos importantes para uma reflexão de uma “Integração” ou como queiram chamar de um diálogo inter-religioso. Vamos analisá-la. Pode-se pensar no pote de barro como Deus, ou expandindo essa concepção, como a imagem do Sagrado, esta na verdade é a compreensão que desejo que tenhamos. O líquido dentro do recipiente, do “pote de barro”, é a essência desse Sagrado que é derramado sobre a terra, o húmus, evidentemente recorro aqui àquela linguagem mítica adâmica. Num sentido mais clarificador o líquido é a Revelação desse Sagrado no solo úmido e fértil. Essa Revelação penetra o solo e corre em diversas direções, múltiplos espaços até encontrar com a “cultura” semeada. O líquido embebe a semente com o caldo nutritivo fazendo com que o mesmo cresça e desenvolva-se segundo a parte que lhe coube desse mesmo líquido. Cada semente podería-se chamar aqui povo, cultura e comunidade. Ora, sendo assim a Revelação de Deus liquidamente derramou-se sobre cada cultura e cada povo.
É importante destacar, para uma primeira perspectiva de evangelização, que Deus está visivelmente presente em toda cultura humana. Não há cultura sem que haja pelo menos uma manifestação de algo que seja maior que o humano e assim se chame isso de divindade. Onde há cultura humana e homens Deus aí está presente. A revelação de Deus foi diluída em cada cultura. Isso significa que podemos encontrar o mesmo Deus cristão nas demais divindades humanas. Não é a toa a similaridade que se encontra entre as narrativas cosmogônicas dos diversos povos. 
Leonardo Boff retrata a imagem de uma narrativa interessante que vem da cultura dos índios Karajá. Narra que no inicio os karajás eram imortais e viviam como peixes circulando por todas as águas. Eles não conheciam o sol, as estrelas, as árvores, os animais terrestres. O Criador havia proibido permanentemente entrar pelo buraco luminoso sob pena de morte. 
Passeavam ao redor do buraco, admiravam a luz que saía dele, ressaltando ainda mais as cores de suas escamas. Tentavam espiar para dentro, mas a luminosidade impedia qualquer visão. Apesar disso, obedeciam filialmente. Mas a tentação de violar a ordem divina era permanente. Certo dia, um karajá violou o tabu da interdição”. (BOFF, p. 18,19) 
Ultrapassando o limite imposto sai do buraco e vê os bosques, o sol, as estrelas, as flores perfumadas, tudo encantava aquele Karajá recém liberto. Como não ler essa narrativa e não lembrar automaticamente da cosmogonia apresentada no mito do Gênesis? As similaridades não terminam por aqui. Olorum, Tupã e outras deidades aparecem como criadores quase que de forma equipare a narrativa apresentada por Boff. Parece, e creio nisso, que Deus revelara-se em sua infinitude transcendente na imanência no que Paulo denominou “multiforme graça”, uma graça, uma gratuidade reveladora para cada povo. É como se Deus quisesse que entendêssemos que cada povo tem uma revelação sua, ainda que não completa, mas significativa para entender o que vem a ser a divindade: o protetor da comunidade, aquele que orienta através dos oráculos a direção que o povo deve tomar etc. 
O cristão mais cuidadoso e ortodoxo perguntará: Então o que você quer é que neguemos a evangelização, que a abandonemos? Não. Não proponho um abolir da evangelização, mas uma re-significação da mesma melhorando-a e restaurando automaticamente o sentido da igreja cristã na sociedade atual. O que seria essa re-significação da evangelização? Direi antes de alguém desistir nesse ponto de continuar a leitura de meus armgumentos.
Como foi percebido que cada cultura possui uma revelação de Deus é importante também destacar que nem toda observação que fazemos sobre determinado objeto é nítida. Conceituamos e re-conceituamos coisas a medida que descobrimos mais sobre aquele algo dado. Bem, com a Revelação funciona da mesma forma. Não significa que cada povo recebeu e captou a revelação da divindade como deveria, já que entendendo ser essa captação partindo da reflexão racional, ou seja, produto da razão. Como a razão é falha em muitas de suas reflexões também houve erros no que se refere a Revelação dada acerca do Sagrado. Nesse momento entra a importância da encarnação do Logos, ou de Jesus.
Jesus, a encarnação do próprio Deus a Terra, o encontro com àquele húmus, vem como orientador da revelação dada a cada cultura. Ele não vem a um povo como muitos defendem em suas apologias etnocêntricas, mas para o homem. Jesus anuncia através de sua mensagem a verdadeira face de Deus, não de Javé, mas de Deus em suas múltiplas revelações. É certo que os primeiros a coletarem seus ditos e historias carregassem ainda um pensamento judaizante e etnocêntrico da salvação de Jesus, mas é Paulo que vai entender o que Jesus realmente queria dizer. 
Paulo em Atos 17.23 e 24, ainda que timidamente, quer mostrar que o Deus apresentado por Jesus já estava presente nas outras formas religiosas de outros povos, era necessário apenas mostrá-lo em sua própria cultura. Por isso, podemos chamar Paulo de o primeiro articulador de uma evangelização incultural. Ele notou Deus num dos deuses gregos, o “Deus Desconhecido”, ainda que eles não conhecessem certamente esse deus possuía seus adeptos e recebia oferendas no Areópago. 
A evangelização passa então de ser uma atividade aculturalizante da igreja cristã para ser na atualidade um projeto de diálogo inter-religioso onde se percebe Deus no outro e em sua cultura religiosa. Esse tipo de evangelização faz com que as antigas barreiras sejam quebradas e novas formas de religiosidade sejam formadas. Pode-se pensar Deus como um mosaico. Cada peça possui uma cor definida que por fim na união de suas peças forma uma delirante paisagem. Cada povo, com sua fala sobre Deus, pode ao unir sua compreensão com a de outros povos produzir a verdadeira face de Deus, na união da miscelânea desses elementos soltos. 
Dessa forma fechar-se-iam também as problemáticas ou as patologias encontradas nos diversos fenômenos religiosos. Cada religião seria o antídoto uma da outra para a eliminação de qualquer discurso anti-vida. Assim uma religião que aciona a morte de crianças como sacrifício para seu deus, como por exemplo a moloquita (Lv 20.2-5), deve ser conscientizada a abandonar tal pratica já numa totalidade Deus se revela como protetor da vida. Dessa forma uma atitude semelhante à moloquita seria uma deformação que houve na revelação por parte da compreensão racional de determinado indivíduo dessa cultura. 
Entende-se então que a evangelização deve funcionar como uma Integração de cada revelação acontecida em diferentes espaços ideológicos e geográficos. Compreendendo Deus diluído nas diversas culturas humanas é se abrir para sua infinitude representada nos diversos discursos sobre o mesmo proferidos por estas mesmas culturas. Aceitar o Sagrado assim, repartido e plurifórmico, é estar ciente de um Deus mais humano, não segregário, não-etnocentrico, totalmente plural, fluído, presente em tudo.




                                                                                                                        Dalmo Santiago Jr