NIETZSCHE: UM GRITO DE ALERTA PARA A IGREJA E UMA PROPOSTA DE SALVAÇÃO PARA A MESMA



           

Dalmo Santiago Junior



            O título de imediato traz ao leitor um susto repentino e um desejo de não continuar a leitura por pensar: "lá vem mais uma reflexão de Nietzsche que “desce a porrada” no cristianismo". De certo modo farei essa reflexão, mas não para induzi-lo a abandonar sua fé, apenas refletir sobre ela e melhorá-la (já que também sou cristão!). O encontro com Nietzsche é algo interessante por suscitar nos espíritos modernos antipatia por aqueles que se entendem religiosos e simpatia pelos que se denominam ateus. Não por acaso surge esses sentimentos nos leitores desse pensador alemão. Porém, posso dizer com certeza que Nietzsche muito mais que um transmutador da moral é um terremoto, como ele mesmo se denominou “sou uma dinamite”, que chacoalha os espíritos dormentes e desperta do sono indolente as almas deleitadas na miséria. É nesse sentido que busco em Nietzsche uma reflexão para nós da igreja.
      Ser crente e, principalmente cristão, é estar ciente de seu compromisso com os ensinos de Jesus de Nazaré, aquele que para uns foi um profeta e para outros Filho de Deus, e assim como crente creio. A pessoa e os ensinamentos de Jesus sempre são os elementos norteadores da vida do cristão. Temas como: amor, compaixão, graça, virtude, misericórdia fazem parte não apenas dos dogmas da igreja, mas também de sua ética. O cristão entende no aceitar o cristianismo como religião sua que deverá caminhar por este caminho sagrado que exige do crente tais práticas. Essa percepção é clara e límpida, mas o que se percebe quando fazemos uma retrospectiva histórica, é que aquela que se considera portadora do Evangelho e promulgadora do mesmo em muitos momentos deu sinal de que não estava comprometida com tal ética. O que dizer de situações como a perseguição engendrada pela Igreja logo no século IV quando sobe ao poder com Constantino.
Não há como desassociar a história da igreja com a morte de milhares de pessoas na Idade Média através do Tribunal do Santo Ofício. Mulheres consideradas bruxas eram lançadas em fogueiras ardentes para purificação de suas almas. Homens doutos nas ciências, como Nicolau Copérnico, ao descobrir o sistema heliocêntrico foi duramente perseguido pela Igreja que ordenou ao mesmo que negasse suas descobertas. Sua obra “Das Revoluções dos Corpos Celestes” foi incluída no Índex (livros proibidos pela Igreja considerados pecaminosos). Aqui refiro-me à Igreja Católica. Só que não foi apenas esta igreja que realizou uma inquisição. Lutero também iniciou a dele.
Nos países em que seus governantes assumiram o protestantismo o derramamento de sangue foi intenso. No século XVI, fins da Baixa Idade Média, houve um massacre de monges da Abadia de São Bernardo de Brémen que eram dilacerados e sofriam o ardor do sal que os protestantes colocavam nos cortes ainda frescos nas carnes abertas. Depois da tortura eram levados à forca para ali morrerem asfixiados e finalmente dilacerados estando já mortos. Poderíamos citar diversos exemplos da violência empregada pelas igrejas cristãs, mas precisamos ser objetivos.
Fiz esse pequeno apanhado histórico para compreendermos que quando Nietzsche diz em seu Zaratustra “Deus morreu” mais do que uma mera declaração de um ateu essa afirmação revela uma responsabilização da igreja cristã como um todo porque, Nietzsche não está dizendo que ele matou Deus, mas que os próprios cristãos o fizeram através de sua práxis de violência. De que morte estaria falando Nietzsche? Foram muitos os argumentos acerca dessa questão, mas hoje entende-se essa “morte” como um de-significado de Deus para a modernidade. E é isso que exatamente preocupa a igreja cristã. Ao olhar em volta ele percebe que está aos poucos perdendo força e terreno no mundo moderno mesmo que consiga manipular as mentes fracas através de sua ideologia do milagre. A destruição da igreja cristã está logo ali se não fizermos nada.
“Deus morreu” por que o cristianismo o tornou insuportável para a modernidade. O homem contemporâneo ao pensar em Deus traz a memória tudo aquilo que ele representa historicamente: morte nas Cruzadas, estupros de índias na mesoamerica por cristãos católicos, fundamentação da animalidade do negro negando sua humanidade... Todas essas coisas fazem a humanidade se questionar e indagar: Pra que precisamos ainda de Deus? Nietzsche diz em sua obra crítica “O Anticristo” coisas que nos fazem pensar o porquê de seu descontentamento com o cristianismo:

Até agora os padres reinaram! Determinaram o significado dos conceitos de “verdadeiro” e “falso”![1]
O idealista, assim como o eclesiástico, carrega todos os grandes conceitos em suas mãos (e não apenas em sua mão!); os lança com um benevolente desprezo contra o “entendimento, os “sentidos”, a “honra, o “bem viver”, a “ciência” vê tais coisas abaixo de si, como forças perniciosas e sedutoras, sobre as quais o “espírito” plana como a coisa pura em si.[2]
Todos os métodos, todos os princípios do espírito científico de hoje foram alvo, por milhares de anos, do mais profundo desprezo; caso um homem se interessasse por eles era excluído da sociedade das pessoas decentes – passava por “inimigo de Deus”, por zombador da verdade, por “possesso”. Enquanto homem da ciência, pertencia à Chandala[3].[4]

                  Nietzsche observa a história do cristianismo e responde ao homem moderno que sempre questiona a importância de Deus: Não! O homem não precisa mais de Deus. O homem precisa de si mesmo. Do Übermansh (além homem). Nietzsche desenvolve uma filosofia do ressentimento, da revolta, contra a práxis da igreja cristã desde suas origens chegando a afirmar tenazmente que “o ultimo cristão morreu numa cruz”. Para ele não houve quem conseguisse seguir os ensinos de Jesus. Sempre numa época ou outra aquela que se vê como sua portadora distanciara-se cada vez mais do propósito original de Jesus. Para Nietzsche a igreja abandonou os princípios jesuânicos de real amor e fraternidade para com o outro para se apegar ao poder político que recebeu com Constantino e dá manutenção até o presente século. Ao se aliar ao poder político-econômico de seu tempo em detrimento da práxis de amor, ao abraçar o poder mais que a doação caridosa, a igreja cristã perdeu o sentido para o mundo não sendo mais necessária, pois não sustenta mais a ideologia do Cristo, mas o da igreja.  
                Nietzsche tem a igreja cristã como um estado doentil da realidade pensativa e existencial humana. A igreja patologizou o ser transformando-o naquilo que ele mesmo denominou de “espírito de rebanho”. Os crentes são ensinados e doutrinados a serem idiotizados pela igreja e não reagirem. São disciplinados a se manterem em estado estático diante da violação que infringem ao humano. Ordena morte de pessoas, sustenta e manipula suas riquezas em Roma em prol do aparato político necessário para continuar como a maior religião do Ocidente e, ensinam aos crentes a verem tudo isso com naturalidade. E as pessoas aceitam e concordam por que foram disciplinados, segundo Nietzsche, a terem este “espírito de rebanho”. Por isso, Nietzsche desponta como uma voz de denúncia dos poderes eclesiais sobre a humanidade. Essa voz é gritante principalmente para a igreja cristã que tem Nietzsche como um destruidor da religião, porém no mesmo Anticristo Nietzsche propõe não uma aniquilação do fenômeno religioso, mas do uma dissolução do cristianismo que se mostrou uma vergonha para a humanidade.

Sem dúvida, quando uma nação está em declínio, quando sente que a crença em seu próprio futuro, sua esperança de liberdade estão se esvaindo, quando começa a enxergar a submissão como primeira necessidade e como medida de autopreservação, então precisa também modificar seu Deus.[5]   

                  Eis a solução para essa vergonha: mudar nosso conceito sobre Deus. Se o Deus que foi apresentado até aqui não satisfaz plenamente a humanidade de forma a conduzi-la a um sentimento de espiritualidade libertadora, feliz, e gratificante, ao invés de doutrinas que prometem a “liberdade de Cristo”, mas se tornam prisões mais rígidas do que aço, deve-se ir ao encontro daquele que nos prometeu a verdadeira liberdade (João 8.36). Faz-se necessária uma recuperação de Deus e do próprio conceito de igreja como eklésia, como lócus de uma comunhão que abre os olhos do ignorante para a realidade como ela é como fez Jesus. A igreja deve ser esse espaço de transformação social e não se tornar o que sempre foi: maculadora da sociedade. Prejudicadora dos homens. Não por acaso Nietzsche expressa: “O cristianismo de fato nega a igreja”.[6]
                A fim de que a igreja retorne ao seu sentido original, à proposta ética do Salvador, Nietzsche nos traça um caminho, uma esperança que faz brilhar essas densas trevas em que a igreja se perdeu: a recuperação do sentido de Reino de Deus. É no Reino de Deus que Nietzsche desempenha um papel significativo para nós cristãos. Para mim foi o único que conseguiu ler esta proposta de maneira mais sapiente.    
                A compreensão de Nietzsche sobre o “Reino de Deus” é o que podemos chamar aqui de circunstância necessária para a salvação do sentido da igreja cristã e respectivamente dela mesma. O cristianismo sofre uma crise sem precedentes na história da humanidade. Do humanismo do século XV à contemporaneidade pode-se notar de que forma vai ocorrendo o esfacelamento da religião cristã. No decorrer das épocas surge cada vez mais pensadores descontentes com a forma de se produzir religião da igreja cristã. Esse esfacelar é gradativo, consume-se paulatinamente à medida que o homem com muito cuidado e provas eficazes vão desfazendo os arcaicos ditos doutrinários da igreja sobre sua fé mórbida e política.
No parágrafo XXXIV de o Anticristo nosso revolucionário autor analisa o Reino de Deus dizendo que “nada poderia ser mais acristão (...) que um Reino de Deus vindouro, de um Reino dos Céus no além (...). Isso tudo, perdoem-me a expressão, é um soco no olho”. Nietzsche percebe no conceito de “Reino de Deus” não uma realidade metafísica, não um porvir, não uma idéia, mas uma realidade concreta que deve se manifestar no concreto. O Reino de Deus que Jesus ensinara a seus discípulos então é algo que faz parte e é existência e não essência como a igreja cristã interpretou durante todo esse tempo.  Jesus mesmo disse em Mateus 3.2 “O Reino dos Céus é chegado”. E é nesse sentido que Nietzsche esboça as seguintes palavras:

O “reino dos céus” é um estado de espírito – não algo que virá “além do mundo” ou “após a morte. (...) O “reino de deus” não é uma coisa pelo qual os homens aguardam: não teve um ontem nem terá um amanhã, não virá em um “milênio” – é uma experiência do coração, está em toda parte e não está em parte alguma...[7]   

                Em outras palavras o que Nietzsche quer dizer é que o Reino de Deus que Jesus fala não é o céu. Esta é uma feliz interpretação do conceito de Reino de Deus. Esta proposta genial de Jesus é um “estado de espírito”, ou poderíamos denominar também de ética. Essa ética não é qualquer tipo de ética, mas é a recuperação do sentido grego que confere o real significado da palavra: ética para os gregos era ethos casa comum. Essa casa constitui não uma construção de tijolos e cimento, mas do próprio ser como ser em busca de um bem viver. Nietzsche compreende essa realidade supra-ética como algo que se deve seguir, se imitar, se espelhar. O homem deve seguir tais passos para se tornar um Übermensch: os passos do Salvador. Pois, “seu legado ao homem foi um estilo de vida”.
O Reino de Deus passa a ser re-significado retornando ao sentido originário da proposta de Jesus trazendo uma profunda reflexão para a igreja cristã de hoje. Nietzsche faz a igreja questionar como tem sido sua prática diante da proposta ética de Jesus e dessa forma, tomar novas posturas distintas das antigas percebidas na antiguidade, no medievo e na contemporaneidade. A igreja a partir daí se vê como impulsionada a ir em busca de sua “pedra angular” de seu fator fundante dessa mensagem de Jesus. É a igreja saindo do mero cristianismo e se tornando igreja no autentico sentido que Jesus conferiu a esse termo.



[1] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. Parágrafo XII
[2] Ibid. Parágrafo VIII.
[3] Chandala é a casta mais baixa no sistema hindu.
[4] Ibid. Parágrafo XIII.
[5] Ibid. Páragrafo XVI.
[6] Ibid. Parágrafo XXVII.
[7] Ibid. Parágrafo XXXIV.

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