E DISSE DEUS: TODO RACISTA É UM LEPROSO: UMA PERSPECTIVA TEOLÓGICA DO RACISMO NA PERÍCOPE DE NÚMEROS 12.1-10





Refletir sobre a temática que envolve o racismo não é tarefa fácil, porém parece-me importante no que diz respeito a realidade do mundo atual. Somos em nossa maioria brasileira, numa população de aproximadamente 180 milhões de brasileiros, de etnia mesclada, mas de características gênicas mais próxima aos negros que aos brancos. Devido à forma de colonização escravista acionada a partir do século XVI pelos brancos europeus, no nosso caso por portugueses e espanhóis, uma gama de populações negras bantus e os jêjes-nagôs vindas do continente africano desembarcaram das naus e caravelas ao continente sul americano a fim de abastecer de mão de obra os engenhos e as fazendas dos senhores brancos. 
Desde a subida nas naus no litoral africano de Moçambique, Cabo Verde e Cabo da Boa Esperança os europeus cristãos já haviam assumido uma posição preconceituosa em relação aos negros. Estes já eram considerados como inferiores tanto na questão racial como religiosa.
Diversos acontecimentos posteriores foram aos poucos revelando o interesse dos povos brancos europeus de identificarem a etnia negra como inferior e primitiva. No caminho dessa história vergonhosa está a antiga Faculdade de Medicina da Bahia situada no Terreiro de Jesus na cidade de Salvador se espelhou nas universidades européias no esforço de inferiorizar a pessoa e a cultura do negro através do processo eugênico. O negro e sua cultura passam por um processo de estigmatização o que vai dar nas diversas formas de preconceito étnico. Digo étnico já que a antropologia cultura desde o século XX tem negado a permanência da conceituação “raça” entendendo não haver diferenciação de raças entre os humanos, mas sim de etnias o que envolve mais uma relação de códigos gênicos que necessariamente suposições cientificas forçadas de capacidades intelectuais ou físicas.
Acrescido a essa descriminação étnica a Igreja, que aliada sempre ao poder dominante utilizou sua influencia política para impor sua forma religiosa, e , numa linguagem própria, considera todo tipo de conteúdo religioso afro assim como sua mística, sua dança, suas comidas e seus rituais demonizados. Além de demonizar a cultura negra a própria pessoa e vida do negro eram consideradas como sem valor algum. O negro era um animal como qualquer outro na fazenda ou nos engenhos de açúcar. Não tinha nem mesmo direito a ter alma. 
Parto dessas premissas complexas apresentadas somente para que entendamos o processo que desencadeou toda a formulação de uma ideologia que desprestigiava e desprestigia o negro juntamente com sua cultura na vida social da contemporaneidade. Apesar de identificar a questão do preconceito em relação ao negro como elemento de minha discussão, desejo me refletir na verdade a toda e qualquer forma em que se manifeste o preconceito dito “racial” já que, entendo ser os preconceitos em sua totalidade similares quanto sua ação de produzir uma exclusão do outro preconceituado. 
Um texto que me suscitou essa questão sobre o racismo, que poderia se chamar aqui de etnismo pelas explicações já dadas sobre a nova postura da antropologia cultural, foi o de Números 12:1-10. Pensar este texto fez-me indagar, ainda que em mim soubesse a resposta, mas mais como uma atitude reflexiva sobre as diversas posições da Igreja diante de múltiplas situações onde a mesma deveria tomar partido de algo, mas que infelizmente se colocava em favor dos opressores. Perguntava-me qual seria a posição de Deus em relação a essa temática tão complexa. Que solução poderíamos encontrar para a problemática suscitada? 
O texto inicia com informação interessante “Miriã e Arão falaram contra Moisés por causa da mulher cuxita que este tomara, pois ele havia desposado uma mulher cuxita” (Nm 12:1). Numa primeira perspectiva esse texto não nos traria informação nova nenhuma, mas aprofundando na analise do mesmo é possível notar que há uma causa para que Miriã e Arão se rebelassem contra seu irmão Moisés. Moisés era um líder que havia mostrado sua competência diante de situações adversas que enfrentara o povo de Israel na peregrinação pelo deserto. Sua competência não poderia ser questionada. O que acho interessante nesse é texto é que normalmente somos levados a falar sobre ele numa compreensão de subversão a uma autoridade instituída, talvez por que em nossa mente esteja introjetada uma subserviência considerável a muitas autoridades que nos subjugam em todo tempo. Seria talvez um “deixar se levar” sem se perceber. Mas na realidade o texto é especifico em abordar a causa da rebelião de Miriã e Arão: “pois ele havia desposado uma mulher cuxita”. Aqui é importante que se faça uma análise etimológica da palavra para um entendimento mais clarificado da idéia que é expressa no texto. Em Gn 10:6 surge a pessoa de Cush como descendente de Cam um dos filhos de Noé. Cush é considerado o pai daqueles que possuíam pele negra. Sua descendência se concentrou no norte do atual Sudão, região desértica, e ali formou uma civilização baseada na pecuária como era de costume entre os povos seminômades e posteriormente sedentários do deserto. Voltando o texto fica explicito a causa da revolta de Miriã e Arão eles não aceitavam a união marital entre Moisés e a cuxita Zípora. 
O texto continua configurando o pano de fundo da cena que virá na chamada de Javé a Moisés, Miriã e Arão para que entrem na Tenda do Encontro, local onde estava guardada a arca. Os mesmos entram na Tenda e Javé inicia um diálogo com os três e logo a nuvem da glória de Deus desce ao lugar sagrado. Na fumaça nenhum deles consegue enxergar um ao outro e a cena final dramática surge. Ao elevar-se a fumaça Miriã nota que está adoentada de lepra. Ora, aquela que estava menosprezando a escolha de Moisés passa agora a ser amaldiçoada por Deus. A enfermidade de Miriã revela uma postura ética de Javé realizando uma inversão de papéis: agora não mais a cuxita é a inferior aos olhos da própria Miriã, mas ela mesma. A condenação para lepra era um resguardo de sete dias longe do arraial para que não houvesse contagio segundo o que ditava Lv 13. 
Essa reação de Deus diante de Miriã passa a ser uma discussão interessante por que vem trazer a uma reflexão sobre a posição de Deus diante de uma atitude racista entre os homens. Tal atitude gerou em Deus uma crise iracunda que revela quais os sentimentos da divindade em relação aqueles que se entendem como “raça superior”. Não é por que Israel era a melhor nação ou raça que fora escolhida por Deus, o que ocorreu foi o inverso, por serem um povo menosprezado, pequeno, sem nenhuma chance diante das demais estruturas tribais que co-existiam com eles é que foram chamados. Essa atitude de Miriã talvez refletia o pensamento de outros dentro da tribo hebréia, pois também Arão não aceitava a união de Moisés com uma negra. 
Moisés no final da trama clama ao Senhor para que o mesmo tenha misericórdia de sua irmã, mas Deus não mostra qualquer tipo de sensibilidade diante da agonia de Miriã. Deus enfurecera-se de tamanha forma que não admitia nenhuma forma de perdoar a que cometeu esse pecado hediondo. No v. 13 Moisés roga, mas é logo interpelado por Javé que diz: “Se seu pai lhe cuspisse no rosto não ficaria envergonhada durante sete dias? Seja Miriã fechada sete dias fora do acampamento”. Para Deus o racismo implica numa atitude antitética a seu propósito primordial do Éden de relacionar-se um humano com o outro. É como se Deus dissesse: “Cuspo na face e desprezo aquele que despreza seu próximo apenas por uma distinção étnica, ou seja, “racial””. O lançar líquidos bucais nas antigas formas tribais parece ser um modo de humilhação do mais grave possível digna de total desprezo. Deus revela sua ira profunda acerca da atitude de Miriã mostrando sua total abominação perante o ocorrido. Assumir a proposta de Deus é romper com toda forma de racismo, é aceitar o Outro não apenas dentro de sua cultura, mas como pessoa, como similar a mim mesmo, digna de todo afeto, respeito e aceitação. Pois para Deus não há “raças”, povos, etnias, superiores e inferiores, mas seres humanos que por serem diferentes genicamente são especiais. Por isso de fato é necessário entender que para Deus todo racista é um leproso em sua própria putrefação interior como desumano.



                                                           

                                                                                                                        Dalmo Santiago Jr


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