DEUS É LÍQUIDO: EVANGELIZAÇÃO COMO IDENTIFICAÇÃO DO SAGRADO NAS CULTURAS HUMANAS



Falar sobre evangelização no presente momento tem sido desafiador para a igreja cristã em suas diversas denominações católicas ou protestantes por representar significativa dificuldade no que diz respeito à penetração de outras culturas. O processo evangelizatório da negação efetuada pelos primeiros missionários que chegaram ao litoral americano, o avanço cientifico e tecnológico, a maior compreensão de outros povos e seu fortalecimento cultural diante da onda cristã configuram-se em obstáculos rígidos quase que impossíveis de superar.
O cristianismo vive numa crise sem precedentes. Termos como: espiritualidade, fé, amor ao próximo, graça, misericórdia, são deixados de lado por serem propostas antitéticas a verdadeira prática da igreja na dinâmica intra-social. Porém, mesmo nessas condições, a igreja possui uma ordenança vinda do próprio Jesus segundo (Mc 16:15) “Ide por todo mundo e pregai o evangelho a toda criatura”.
Mas como evangelizar nesses “tempos modernos”, ou como alguns apressados já consideram “pós-modernos”? Como penetrar em culturas tão sólidas e complexas como as islâmicas, chinesas e russas? Não é possível mais sustentar as pretéritas formas de missão da negação cultural de outrem. Na verdade até mesmo no que se refere à terminologia “missão” tenho grande dificuldade de manter esse código como positivo. Missão traz a mente uma idéia de guerra, de conquista, de exploração, de negação, de morte. Não é a toa que possui seu lugar na linguagem belicosa dos poderes de defesa nacionais. Assim proponho uma nova forma de missão, tirando-se primeiramente tal conceito negador substituindo-o por “Integração”. 
Para continuar essa reflexão gostaria de pensar uma alegoria que pensara ao raciocinar sobre a temática apresentada. Imagine um homem da zona rural que toma um recipiente nas mãos cheio de um líquido nutritivo e que começa a derramá-lo sobre o solo fértil (húmus). Nesse solo já havia semeado sementes de diversos tipos de arvores e semelhantemente, em mesma medida, regou-as com àquele líquido. Passado algum tempo as sementes germinaram saudáveis, desenvolveram-se em árvores frondosas e frutíferas. 
Pensando sobre a alegoria é possível tirar elementos importantes para uma reflexão de uma “Integração” ou como queiram chamar de um diálogo inter-religioso. Vamos analisá-la. Pode-se pensar no pote de barro como Deus, ou expandindo essa concepção, como a imagem do Sagrado, esta na verdade é a compreensão que desejo que tenhamos. O líquido dentro do recipiente, do “pote de barro”, é a essência desse Sagrado que é derramado sobre a terra, o húmus, evidentemente recorro aqui àquela linguagem mítica adâmica. Num sentido mais clarificador o líquido é a Revelação desse Sagrado no solo úmido e fértil. Essa Revelação penetra o solo e corre em diversas direções, múltiplos espaços até encontrar com a “cultura” semeada. O líquido embebe a semente com o caldo nutritivo fazendo com que o mesmo cresça e desenvolva-se segundo a parte que lhe coube desse mesmo líquido. Cada semente podería-se chamar aqui povo, cultura e comunidade. Ora, sendo assim a Revelação de Deus liquidamente derramou-se sobre cada cultura e cada povo.
É importante destacar, para uma primeira perspectiva de evangelização, que Deus está visivelmente presente em toda cultura humana. Não há cultura sem que haja pelo menos uma manifestação de algo que seja maior que o humano e assim se chame isso de divindade. Onde há cultura humana e homens Deus aí está presente. A revelação de Deus foi diluída em cada cultura. Isso significa que podemos encontrar o mesmo Deus cristão nas demais divindades humanas. Não é a toa a similaridade que se encontra entre as narrativas cosmogônicas dos diversos povos. 
Leonardo Boff retrata a imagem de uma narrativa interessante que vem da cultura dos índios Karajá. Narra que no inicio os karajás eram imortais e viviam como peixes circulando por todas as águas. Eles não conheciam o sol, as estrelas, as árvores, os animais terrestres. O Criador havia proibido permanentemente entrar pelo buraco luminoso sob pena de morte. 
Passeavam ao redor do buraco, admiravam a luz que saía dele, ressaltando ainda mais as cores de suas escamas. Tentavam espiar para dentro, mas a luminosidade impedia qualquer visão. Apesar disso, obedeciam filialmente. Mas a tentação de violar a ordem divina era permanente. Certo dia, um karajá violou o tabu da interdição”. (BOFF, p. 18,19) 
Ultrapassando o limite imposto sai do buraco e vê os bosques, o sol, as estrelas, as flores perfumadas, tudo encantava aquele Karajá recém liberto. Como não ler essa narrativa e não lembrar automaticamente da cosmogonia apresentada no mito do Gênesis? As similaridades não terminam por aqui. Olorum, Tupã e outras deidades aparecem como criadores quase que de forma equipare a narrativa apresentada por Boff. Parece, e creio nisso, que Deus revelara-se em sua infinitude transcendente na imanência no que Paulo denominou “multiforme graça”, uma graça, uma gratuidade reveladora para cada povo. É como se Deus quisesse que entendêssemos que cada povo tem uma revelação sua, ainda que não completa, mas significativa para entender o que vem a ser a divindade: o protetor da comunidade, aquele que orienta através dos oráculos a direção que o povo deve tomar etc. 
O cristão mais cuidadoso e ortodoxo perguntará: Então o que você quer é que neguemos a evangelização, que a abandonemos? Não. Não proponho um abolir da evangelização, mas uma re-significação da mesma melhorando-a e restaurando automaticamente o sentido da igreja cristã na sociedade atual. O que seria essa re-significação da evangelização? Direi antes de alguém desistir nesse ponto de continuar a leitura de meus armgumentos.
Como foi percebido que cada cultura possui uma revelação de Deus é importante também destacar que nem toda observação que fazemos sobre determinado objeto é nítida. Conceituamos e re-conceituamos coisas a medida que descobrimos mais sobre aquele algo dado. Bem, com a Revelação funciona da mesma forma. Não significa que cada povo recebeu e captou a revelação da divindade como deveria, já que entendendo ser essa captação partindo da reflexão racional, ou seja, produto da razão. Como a razão é falha em muitas de suas reflexões também houve erros no que se refere a Revelação dada acerca do Sagrado. Nesse momento entra a importância da encarnação do Logos, ou de Jesus.
Jesus, a encarnação do próprio Deus a Terra, o encontro com àquele húmus, vem como orientador da revelação dada a cada cultura. Ele não vem a um povo como muitos defendem em suas apologias etnocêntricas, mas para o homem. Jesus anuncia através de sua mensagem a verdadeira face de Deus, não de Javé, mas de Deus em suas múltiplas revelações. É certo que os primeiros a coletarem seus ditos e historias carregassem ainda um pensamento judaizante e etnocêntrico da salvação de Jesus, mas é Paulo que vai entender o que Jesus realmente queria dizer. 
Paulo em Atos 17.23 e 24, ainda que timidamente, quer mostrar que o Deus apresentado por Jesus já estava presente nas outras formas religiosas de outros povos, era necessário apenas mostrá-lo em sua própria cultura. Por isso, podemos chamar Paulo de o primeiro articulador de uma evangelização incultural. Ele notou Deus num dos deuses gregos, o “Deus Desconhecido”, ainda que eles não conhecessem certamente esse deus possuía seus adeptos e recebia oferendas no Areópago. 
A evangelização passa então de ser uma atividade aculturalizante da igreja cristã para ser na atualidade um projeto de diálogo inter-religioso onde se percebe Deus no outro e em sua cultura religiosa. Esse tipo de evangelização faz com que as antigas barreiras sejam quebradas e novas formas de religiosidade sejam formadas. Pode-se pensar Deus como um mosaico. Cada peça possui uma cor definida que por fim na união de suas peças forma uma delirante paisagem. Cada povo, com sua fala sobre Deus, pode ao unir sua compreensão com a de outros povos produzir a verdadeira face de Deus, na união da miscelânea desses elementos soltos. 
Dessa forma fechar-se-iam também as problemáticas ou as patologias encontradas nos diversos fenômenos religiosos. Cada religião seria o antídoto uma da outra para a eliminação de qualquer discurso anti-vida. Assim uma religião que aciona a morte de crianças como sacrifício para seu deus, como por exemplo a moloquita (Lv 20.2-5), deve ser conscientizada a abandonar tal pratica já numa totalidade Deus se revela como protetor da vida. Dessa forma uma atitude semelhante à moloquita seria uma deformação que houve na revelação por parte da compreensão racional de determinado indivíduo dessa cultura. 
Entende-se então que a evangelização deve funcionar como uma Integração de cada revelação acontecida em diferentes espaços ideológicos e geográficos. Compreendendo Deus diluído nas diversas culturas humanas é se abrir para sua infinitude representada nos diversos discursos sobre o mesmo proferidos por estas mesmas culturas. Aceitar o Sagrado assim, repartido e plurifórmico, é estar ciente de um Deus mais humano, não segregário, não-etnocentrico, totalmente plural, fluído, presente em tudo.




                                                                                                                        Dalmo Santiago Jr

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